A Rotina não Basta ao Coração do Homem.
A
rotina começa por ser um esforço de regularidade nos vários planos da
existência, esforço que, temos de dizer, é em si positivo.
A
vida seria impossível se o eliminássemos de todo. As rotinas têm um efeito
saudável: tornando o quotidiano um encadeado de situações expectáveis,
permitem-nos habitar com confiança o tempo. Mas o que começa por ser bom
esconde também um perigo.
De
repente, a rotina substitui-se à própria vida. Quando tudo se torna óbvio e
regulado, deixa de haver lugar para a surpresa. Cada dia é simplesmente igual
ao anterior. A nossa viagem passa para as mãos de um piloto automático, que só
tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente
estabelecidas. Os sentidos adormecem. Bem podem os dias ser novos a cada manhã ou
o instante abrir-se como um limiar inédito, que nunca os cruzaremos assim. Os
nossos olhos sonolentos veem tudo como repetido. E, sem nos darmos conta,
acontece-nos o que o salmo bíblico descreve a propósito dos ídolos: «Têm boca,
mas não falam; olhos têm, mas não veem./ Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes
têm, mas não cheiram./ Têm mãos, mas não palpam» (SI 115,5-7).
Podemos
equivocadamente pensar que nos é possível viver assim.
Mas
chega a estação, como recorda o livro do Eclesiastes, em que «a vista não se
sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve» (Ecl 1,8). A
rotina não basta ao coração do homem.
O grande desafio é, em cada dia, voltar a
olhar tudo pela primeira vez, deslumbrando-se com a surpresa dos dias. É
reconhecer que este instante que passa é a porta por onde entra a alegria. Mas
para isso teremos de recuperar a sensibilidade à vida, à sua desconcertante
simplicidade, ao seu canto frágil, às suas travessias.
A vida que nos havíamos
habituado já a consumir no relâmpago que dura um fósforo, sem ouvi-la
verdadeiramente, sem conspirar para a sua plenitude. Para responder à pergunta
sobre o sentido que a dada altura nos assalta («a vida que levo que sentido
tem?») é indispensável uma pedagogia de reativação dos sentidos.
Fonte: José Tolentino Mendonça, em “ A Mística do Instante ” .