quinta-feira, 30 de maio de 2019

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Estranho sentimento, a inveja.


Estranho sentimento, a inveja. E, contudo, tão infiltrado nas relações humanas, tão abrasivo da vida interior, tão capaz de fazer em cacos ambientes (familiares, de trabalho, de amizade). Muitas vezes a inveja é olhada com impotência, como se não houvesse nada a fazer, ou até condescendentemente, porque a verdade é esta: qualquer um de nós, em alguma ocasião, não está livre de incorrer nela. 
Aquele que inveja reveste o seu objeto de uma admiração que tem pouco a ver com a realidade. Imagina que aquilo que o outro possui (inteligência, sucesso, beleza, bens, o que seja) lhe confere uma espécie de onipotência, o coloca a salvo da fadiga de viver, da sua turbulência e dor. A desproporcionada felicidade que sonhamos que há nos outros obsidia-nos, e essa admiração adoecida é experimentada como uma perda pessoal e uma injustiça, numa modalidade tão avassaladora que suscita uma ânsia irreversível de destruição, de cancelamento do outro. A inveja é o sentimento disruptivo em relação a outra pessoa que possui ou desfruta algo desejável - e o impulso do invejoso é eliminar ou estragar o que pensa ser a fonte dessa alegria. O outro deixa de ser um parceiro e torna-se um rival. Deixa de ser uma existência autônoma e diferenciada para andar, na maior parte dos casos sem saber, enredado nos dramas, ficções e combates fantasmáticos do eu. Deixa de constituir a possibilidade criativa de um encontro para viver capturado num ressentimento que invade tudo de mesquinhez e sombra.

Fonte: Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas' 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

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Não Será Tempo de Voltarmos aos Sentidos?


Não somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados num corpo social, que solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o maior teórico da comunicação do século XX, Marshall McLuhan, para perceber até que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por exemplo, é imensamente elucidativo: «Um dos efeitos da televisão é retirar a identidade pessoal. Só por ver televisão, as pessoas tornam-se num grupo coletivo de iguais. Perdem o interesse pela singularidade pessoal.» Se repararmos, os meios que lideram a comunicação humana contemporânea (da televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem apenas com aqueles dos nossos sentidos que captam sinais à distância: fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se assim uma descontrolada hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a recair toda a responsabilidade pela participação no real. «Viste aquilo?», «já ouviste a última do...»: os nossos quotidianos são continuamente bombardeados pela pressão do ver e do ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a pilotar um avião, a conduzir um automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas artérias das cidades modernas, o fundamental são os sentidos que colhem a informação visual e sonora. Nem será necessário lembrar que não é assim em todas as culturas. Esta sobrecarga sobre os sentidos que captam o que está mais afastado de nós esconde o subdesenvolvimento e a pobreza em que os outros são deixados. Ao mesmo tempo que floresce a indústria dos perfumes, desaprendemos a distinguir o aroma das flores. Por mais que isso seja dez mil vezes mais prático, passar pela frutaria do inodoro hipermercado não é a mesma coisa que atravessar a catedral de aromas de um pomar. E de modo semelhante com os outros sentidos que implicam proximidade: o paladar e o tato. Hoje, só os profissionais arriscam provas cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos que comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte do design ou pela manipulação do próprio sabor. Para não falar do tato. A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os «analfabetos emocionais» que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e sentido?

Fonte: Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante' 

terça-feira, 14 de maio de 2019

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Controlar a Vida a 360 Graus.


Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do controle. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer, evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. « A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem ar. A dor precisa de espaço », escreve Marguerite Duras nas páginas autobiográficas do volume a que chamou « A Dor ». E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar enigmaticamente todas as nossas possibilidades. E colocamos em dúvida que este limitado corpo que somos seja o lugar para viver a nossa aventura total ou um fragmento dela que seja significativo. Precisaríamos de recursos que nos capacitassem a vivenciar a incapacidade, provocada pela dor, com outro ânimo e outro olhar.

 Fonte: Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante' 

terça-feira, 7 de maio de 2019

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A Nossa Maior Crueldade é o Tempo.

A nossa maior crueldade é o tempo. Como um fabricante de armadilhas desajeitado que acaba sempre prisioneiro das engrenagens que produz, também nós inventamos o tempo e nunca temos tempo. Os nossos relógios nunca dormem. Quantas vezes o tempo é a nossa desculpa para desinvestir da vida, para perpetuar o desencontro que mantemos com ela? Como não temos diante de nós os séculos, renunciamos à audácia de viver plenamente o breve instante. A imagem de crono, devorando aquilo que gera, obsidia-nos. O tempo consome-nos sem nos encaminhar verdadeiramente para a consumação da promessa. Nesse sentido, o consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são naquele momento, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do nosso teatro interno, são uma corrida contra o tempo. A verdade é que precisamos reconciliar-nos com o tempo. Não nos basta um conceito de tempo linear, ininterrupto, mecanizado, puramente histórico. O continuum homogéneo do tempo que a teoria do progresso desenha não conhece a rutura trazida pela novidade surpreendente. E a redenção é essa novidade. Precisamos identificar uma dupla significação no instante presente. O presente pode ser uma passagem horizontal, quantitativa, na perspetiva de uma realização entre este instante e o que lhe sucede. Mas o presente tem também um sentido vertical que requalifica o tempo, abrindo-o à eternidade. É o tempo qualitativo, epifânico. 

 Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'.