Não Será
Tempo de Voltarmos aos Sentidos?
Não
somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados num corpo social, que
solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o
maior teórico da comunicação do século XX, Marshall McLuhan, para perceber até
que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o
indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por
exemplo, é imensamente elucidativo: «Um dos efeitos da televisão é retirar a
identidade pessoal. Só por ver televisão, as pessoas tornam-se num grupo
coletivo de iguais. Perdem o interesse pela singularidade pessoal.» Se
repararmos, os meios que lideram a comunicação humana contemporânea (da
televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem
apenas com aqueles dos nossos sentidos que captam sinais à distância:
fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se assim uma descontrolada
hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a recair toda a responsabilidade
pela participação no real. «Viste aquilo?», «já ouviste a última do...»: os
nossos quotidianos são continuamente bombardeados pela pressão do ver e do
ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a pilotar um avião, a conduzir um
automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas artérias das cidades modernas, o
fundamental são os sentidos que colhem a informação visual e sonora. Nem será
necessário lembrar que não é assim em todas as culturas. Esta sobrecarga sobre
os sentidos que captam o que está mais afastado de nós esconde o
subdesenvolvimento e a pobreza em que os outros são deixados. Ao mesmo tempo
que floresce a indústria dos perfumes, desaprendemos a distinguir o aroma das
flores. Por mais que isso seja dez mil vezes mais prático, passar pela frutaria
do inodoro hipermercado não é a mesma coisa que atravessar a catedral de aromas
de um pomar. E de modo semelhante com os outros sentidos que implicam
proximidade: o paladar e o tato. Hoje, só os profissionais arriscam provas
cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos que
comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte
do design ou pela manipulação do próprio sabor. Para não falar
do tato. A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas
tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar
mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida
desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os «analfabetos
emocionais» que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de
voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os
revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une
sentidos e sentido?
Fonte: Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'
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